quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ocorrência Número 1

O telefone toca. Enquanto o motorista anota o endereço da próxima ocorrência, a técnica (no caso, eu), põe a chave na porta e se prepara para correr. Endereço devidamente anotado, porta trancada, lá correm os dois para a ambulância na esperança de ajudar mais uma vítima angustiada. Conforme a orientação do médico regulador seguimos rumo a Doutor Pedrinho, com o barulho ensurdecedor da sirene nos ouvidos, anotando  todas as coordenadas na ficha de atendimento.  Lembre-se que a ambulância está em movimento e nesse caso, a letra fica um espetáculo, como vocês podem imaginar. Após subir serra, descer serra, passar no "centro" da cidade em direção a área rural, atravessar um pasto com diversas vaquinhas nos observando, enfim, chegamos ao portão da tão esperada casa que nos foi passado como endereço da ocorrência. O que mais nos chamou a atenção é que não havia ninguém desesperado acenando como louco com um sinalizador na mão, no meio da estrada ou melhor, do pasto, ou algum familiar gritando como louco e nos xingando porque demoramos tanto para chegar, ou melhor ainda, alguém estirado pelo chão entre a vida e a morte. Após chamar a beira do portão, batendo palmas por alguns minutos, uma senhora franzina de cabelos brancos veio nos receber, com a maior calma. Quando perguntei a ela se foi ali que chamaram uma ambulância ela me olhou, abriu o portão e começou falar em alemão, com as duas mãos na cintura. E adivinha...eu não falo nem entendo alemão e muito menos o motorista que até então estava rindo da situação, achando que era um trote.


Houve alguns minutos de intensa falta de comunicação e entendimento, e após algumas palavras balbuciadas pela franzina senhora, mais parecendo com xingamentos, ela começou adentrar em casa me fazendo sinal para segui-la. E lá fomos nós atrás dela. A coisa começou a ficar tensa quando começamos entrar na casa, tudo na mais completa penumbra, corredores escuros com cortinas de tecido e gatos deitados por todos os cantos, nos observando. Me senti em um filme de terror. Após atravessar um interminável corredor de madeira chegamos a uma sala ampla onde havia um senhor deitado numa espécie de sofá-cama, tampado até o pescoço com cobertas pesadas que nos recebeu animadamente. Aquela adorável senhora então simplesmente saiu da sala sem dizer uma palavra, nos deixando com aquele outro velhinho que para nossa sorte, falava português. Coloquei as mochilas de atendimento e toda parafernalha no chão e me aproximei do nosso paciente que então disse que foi ele que nos chamou. Num golpe só, levantou todas aquelas cobertas e apontando para a sua barriga, falou:

- Olha só o que me aconteceu...de tanto eu tossir! - Silêncio absoluto no recinto por intermináveis cinco segundos.

Quando coloco meus olhos sobre o abdomen da pobre criatura, sinto um arrepio percorrer minha coluna. Todo o intestino delgado do homenzinho estava para fora da cavidade abdominal. E sem saber o que fazer, ele tentava inutilmente pegar com as pontas dos dedos o próprio intestino e colocá-lo para dentro da barriga. Rapidamente pedi para que não tocasse em nada. Após fazer o atendimento de primeiros socorros, tapar com uma compressa estéril, molhar com soro fisiológico e enfaixar com gaze, mentalizar sem pânico que estou com o intestino delgado de uma pessoa viva nas minhas mãos, coloquei o paciente delicadamente na ambulância e liguei para o médico, pedindo autorização para removê-lo o mais depressa possível daquele lugar. Após explicar toda a situação para o médico regulador, o mesmo atendeu meu pedido. O paciente havia feito uma cirurgia para retirada de um tumor no abdomen a quatro dias e como tinha muita tosse devido um resfriado recente, os pontos acabaram abrindo (deiscência de sutura no termo técnico) e o resto você já sabe. Bem, vou resumir a história pois se contar todos os detalhes ficarei aqui por muito tempo.

Esse paciente foi encaminhado diretamente para Blumenau  para refazer os pontos e uma limpeza geral da cavidade abdominal, pois com tantos gatos e sujeira naquela casa, provavelmente morreria de sepse (infecção generalizada). O que aconteceu depois com nosso paciente, eu nunca fiquei sabendo, pois quando  trabalhamos com resgate, você faz o primeiro atendimento e dificilmente verá o paciente outra vez, a menos que seja um paciente crônico que necessite de atendimento outras vezes.

Bem, vamos ficando por aqui e assim que me lembrar de algum atendimento incomum, compartilharei-o com vocês.

Até a próxima ocorrência!

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